sábado, 15 de fevereiro de 2020

Conto: Superando uma má fase, Ana I. J. Mercury

Olá, galerê, tudo beleza?
Já que me expus na chuva, vou acabar de me molhar! rsrsrsrs
Como no post anterior publiquei o meu conto Um casamento em 2086 (leia aqui!), resolvi postar esse outro conto que escrevi em novembro de 2019, para participar de um projeto em um grupo do Facebook, e que apesar de ser inteiramente ficcional, me traz lembranças da minha infância.

Confira aí! 

Superando uma má fase
Ana I. J. Mercury

1
   Enquanto retiro meu surrado exemplar de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban da estante, abarrotada até o teto, reflito como minha vida vinha mudando neste último ano.
   Após a perda de meu avô, já na casa dos 90, uma depressão forte e traiçoeira me pegou. Por mais que eu saiba que meu avô, Thiago, tivera uma vida longa e feliz, era como se tivéssemos passado poucos meses juntos. 
   Desde pequeno eu era acostumado com suas histórias de vida e seu amor pelos livros. Foi ele quem me ensinou a ler, mesmo antes de eu entrar na pré-escola, com cinco anos. Foi ele quem comprou meus primeiros livros de piratas, animaizinhos, e mais tarde da incrível coleção Vaga-lume. E também foi ele, quem muito insistiu com minha mãe, até ela perder o receio e me deixar adentrar no mundo mágico de Harry Potter. Minha mãe era meio cabreira com livros de fantasia.
   Rio observando a capa do meu volume preferido da série. Meu avô comprou um por um, lia junto comigo e ficávamos até tarde da noite debatendo sobre o que aconteceria e qual seria o final do bruxinho mais amado da ficção.
   Minha avó, Luiza, faleceu anos antes de eu nascer e os pais da minha mãe moram em outro estado, assim, vovô Thiago foi minha única referência sobre avós, e sinceramente, eu não poderia ter tido um avô melhor. 
   Até que, ano passado, seu coração tão esperto e valente, foi enfraquecendo aos poucos, e mesmo com dor, ele sorria e fazia piadas, enquanto eu lia nas visitas ao hospital, e depois, em seus últimos dias de vida em casa, quando seus olhos já falhavam miseravelmente.
   Embora a morte seja algo natural da vida, foi extremamente cortante. É estranho e interessante fechar esse ciclo. Por anos, quando eu mal falava, era ele quem lia para mim, e em seu último ano de vida, era eu quem lia para ele. Livros era a nossa ligação mais intensa. O fio que nos uniu desde o princípio e o que nos deu forças até o fim. Porém, eu eu não via mais graça nenhuma em ler depois de sua partida. 
   Uma ressaca literária me pegou. E por meses fiquei imerso numa depressão incontida. Tudo me doía. Era difícil levantar, ir para o colégio, conviver com as pessoas normalmente. Era como se me faltasse um órgão vital. Minhas notas caíram drasticamente e quase reprovei de série.
   Infelizmente, a diretora ligou para a minha mãe, que foi — reclamando muito — ao colégio explicar minha queda. Ao saber do ocorrido e do meu problema com o luto, o professor de literatura — tinha que ser! — Carlos, veio conversar comigo. Tremi, a raiva chegou petulante, me preparei para a bronca de peito estufado, pronto para retrucar. E qual não foi a minha surpresa, ao ser convidado a ir visitar um asilo com ele. Eu nem sabia que tinha um asilo em minha cidade!
   — Daniel, sei de sua perda e que nada poderá mudar isso. Mas, naquele asilo têm muitos avôs e avós precisando de uma atenção, de um carinho de neto. E você precisa seguir em frente. Nada melhor do que conversar com quem sabe o que é a solidão e a perda. O que me diz? Eu sempre vou lá bater um papo, tocar violão e ler para eles. Vamos?
   Fiquei de pensar, o professor ia toda quarta e sexta, como ele tinha conversado comigo na segunda, deixei passar a quarta. No entanto, na sexta algo queimava dentro de mim. E me surpreendi ao perceber que era a vontade, a curiosidade e a ansiedade de conhecer essas pessoas, saber de sua história, de sua família, de seus sonhos... Será mesmo que eu deveria tentar?
   A falta de vovô ninguém mudaria, nada ocuparia o buraco em meu peito que ele deixou ferroando. Contudo, sei que ele queria o melhor para mim. Sempre me amou, sempre sonhou os meus sonhos e me acompanhou em cada momento de felicidade e de decepção. Eu sei que para honrar todo o esforço que ele fez por mim eu precisava seguir em frente. Ao mesmo tempo, tenho medo de esquecê-lo. Medo de ser feliz novamente. Porque não é justo. Não sem ele.

2
   Com raiva de mim mesmo, acabei indo naquela sexta-feira e a partir daí minha vida mudou completamente.
   Senti uma aprovação dentro de mim, desde a primeira vez que pus meus pés naquele pátio do asilo São Gabriel.
   O asilo era um casarão grande, arejado, colorido por diversas flores e cadeiras de área espalhadas pelo pátio. Lá, a maioria dos velhinhos ficavam esperando os voluntários chegarem. O professor Carlos me explicou no caminho, que algumas igrejas e colégios da região sempre iam a tarde visitá-los, levar uma comida diferente, fazer doações de roupas e alimentos ou apenas papear e divertir os velhinhos.
   Logo que chegamos, o professor me apresentou a todos, e uau!, ele conhecia todos mesmo! Fui abraçado pelas avozinhas, apertei as mãos e pedi a bênção para muitos avozinhos e foi tudo tão calmo, tranquilo e alegre que, por um momento, aquela dor sufocante em meu peito relaxou e pude sorrir novamente. Não com tanto ardor como eu ria até a barriga doer com vovô Thiago, mas eu fui feliz, naqueles sessenta minutos ali, rodeado de desconhecidos que me trataram com tanto carinho e simplicidade.
   A dona Vitória, uma senhora muito vivaz e querida, me contou que estava lá há quatro anos. Seu filho era um empresário muito rico e ocupado, que acabou se mudando para o exterior e preferiu deixá-la lá. Fazia um ano e meio que ela não o via, e o que mais lhe doía não era apenas o abandono do filho, como também, a saudade dos netos. A vontade de lhes contar sobre a suas lutas na vida, seu amor pelo avô falecido e as peripécias do filho quando criança. Senti meus olhos arderem ao ouvi-la. Como o filho pode ter abandonado-a? Uma senhorinha tão meiga e cativante! Sentia muito por ela, porque eu também me sinto abandonado por vovô.

3
   Tomo um copo d'água para refrescar a garganta. Ah! Quem eu estou querendo enganar? É, tento aliviar o bolo que se fez em minha garganta ao me recordar desse meu primeiro dia, e da dor antiga e paralisante da perda de vovô. Hoje, seis meses após minha primeira visita ao asilo, me sinto renovado, e sei que Deus — e quem sabe tenha o dedo de vovô nisso! — me deram uma nova chance de viver, amar, crescer e olhar para o ser humano de uma nova forma. 
   O asilo São Gabriel me ajudou a sair daquela depressão pós-luto. Ainda dói demais a saudade de vovô. Às vezes, ao acordar ainda acho que ele está vivo. E quando acontece algo muito bom ou muito ruim, corro pegar o celular ou vou em direção ao seu quarto para lhe contar, como eu fazia sempre quando ele estava aqui. 
   É isso, é mais que um costume. É amor, é uma ligação, é uma eterna parte de mim. Sempre estaremos juntos ligados pelo amor e pelos momentos que compartilhamos. E sei que um dia o encontrarei no paraíso. 
   Por ora, corro pegar minha bicicleta e minha mochila, que minha mãe fez o favor de colocar dentro, um pote com seu bolo de cenoura famoso, em cima da mesa, especialmente para a turma do asilo. E pedalo em direção ao futuro e a superação.

4
   Seu Jorge é um senhor de 77 anos, que após ter tido vários problemas cardíacos e ainda precisar de tratamento, resolveu, por fim, viver aqui. De todos os velhinhos, ele é quem mais me afeiçoei. Sua história é bonita, solitária e triste. Quando tinha 24 anos, se apaixonou por uma moça chamada Sara e não foi correspondido. Apesar de ter tido uma vida boa, um emprego bem remunerado, viajado por toda a Europa, estudado numa das maiores faculdades do país, ainda assim, nunca conseguiu esquecê-la. Seguiu com a vida solteiro e infeliz. Ao perder os pais, como filho único, continuou nessa solidão até a idade cobrar e algumas doenças chegarem. 
   Compreendendo que não poderia continuar sozinho, que não conseguiria fazer tudo como antes, cuidar da casa e de si mesmo, foi para o asilo. Sem esperanças, nem sonhos, esperando a morte chegar. Sua única vontade era sair deste mundo que só lhe trouxe amargura. Mas lá, com os outros senhores, fez amigos e conseguiu se animar, ter vontade de continuar.
   Quando eu comecei as visitas, ficava apenas atrás do professor Carlos, sem saber bem o que fazer. Até que um dia, meio encabulado, puxei assunto com seu Jorge e contei, sabe-se lá o porquê, de meu avô e do nosso amor pelos livros. Ele me pediu, encarecidamente, se eu poderia ler para ele também. E, bem, assim nos tornamos grandes amigos.
   Eu estava relendo para mim e lendo pela primeira vez para ele a série Harry Potter. E que animação e curiosidade esse homem ficava! As cuidadoras e a dona do asilo até me liberaram para ir lá todos os dias, desde que eu ficasse apenas uma hora, para não cansar demais os meus amigos, e eu lia e lia e lia.
   Seu Jorge nunca faltava nos momentos de leitura, e alguns outros também se sentavam conosco para me ouvir. As avozinhas gostavam mais de conversar e cantarem juntas com Carlos e os outros voluntários. 
   E eu e seu Jorge tínhamos papos sérios sobre como derrotar Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado* e se o Harry sairia inteiro dessa! É claro que eu já sabia de cor o final, mas deixei a empolgação de seu Jorge tomar conta!

5
   Abro o portão do asilo, com o coração enternecido e uma agitação dentro de mim! Estou ansioso para terminarmos Prisioneiro de Azkaban! Esse livro é muito incrível e fico imaginando a surpresa que o seu Jorge e outros senhorzinhos terão com a verdade sobre o Sirius Black!**
    — Chegou, meu neto-postiço querido! — exclama seu Jorge vindo me encontrar no portão.
    — Seu Jorge — cumprimento-o com um abraço de lado, sorrindo. Ah! Esse meu avô postiço…
  — Me conta tudo do seu encontro com a mocinha bonita do curso de inglês! — indaga ele entusiasmado, referindo-se a minha crush, Lucy. Por que eu fui contar pra ele dela? Que vergonha.
    — Primeiro, vamos terminar o livro! - respondo rápido sentindo meu rosto queimar.
   E assim caminhamos juntos em direção ao pátio e aos novos começos e amizades.

Fim

Pra quem não leu Harry Potter:
*Lord Voldemort, vilão na série.
**Sirius Black é um dos personagens principais.

Um comentário:

  1. Ana, que graça de conto, e como ele mexeu comigo. Lembrei dos meus avós que já se foram, mas principalmente do meu avô que está vivo, com 97 anos, e está há dois anos lutando contra um câncer e tem sofrido horrores. Nossa, viajei na sua história e lembrei da minha com ele. Também lembrei do meu avô paterno que era analfabeto e eu o ensinei a ler e era lindo vê-lo chegar carregando seu caderno, lápis, borracha e livros, feliz que nem criança, porque ia aprender a ler e a escrever. Nossa que emocionante seu conto. Amei a forma que você escreve, amei sua leveza. Parabéns, queridona.
    Beijo, beijo,
    She.

    ResponderExcluir

Deixe aqui sua opinião sobre o post!
Sem comentários ofensivos.
Assim que puder, retribuirei a visita!

Beijos,
Ana M.